República Tcheca: Cafe Elefant, 16h

Ao movimentar a porta de madeira e vidro, o aroma de café misturado ao de sobremesas diversas provocou em Jan uma sensação de familiaridade. Mesmo se estivesse de olhos vendados, ele saberia que tinha chegado ao Cafe Elefante. Pudera, era lá que o maestro encerrava muitas de suas caminhadas feitas nas tardes de sábado desde que voltara à República Tcheca para morar em Karlovy Vary.

Graças ao conhecimento prévio característico de um cliente assíduo, ele nem precisou do cardápio para fazer o pedido: Uma fatia da torta Stirlitcz e um expresso premium. Após trocar mais algumas palavras, Jan subiu as escadas de madeira, passou pelo elefante marrom que contrastava com as paredes pintadas em azul claríssimo e olhou em volta.

Desta vez, escolheu uma mesa na parte interna, perto do balcão feito com uma madeira escura como o paquiderme decorativo que era uma testemunha silenciosa do vai e vem de clientes na longa história daquele lugar. Alguns deles eram artistas como próprio maestro, que precisava ler um material sobre a temporada de concertos antes de voltar para casa e não queria que o vento espalhasse as folhas soltas.

Antes de se recostar na cadeira, Jan observou outra vez a movimentação no ambiente. Um casal conversava baixinho, uma mulher deslizava os dedos pela tela do celular sem prestar muita atenção ao conteúdo que aparecia, uma família em viagem de férias fotografava três crianças tentando enquadrar o elefante dourado que adornava a fachada daquela construção.

Quando Jan abaixou a cabeça para aproximar a cadeira da mesa, duas mulheres passaram por ele. Elas cruzaram a sala forrada com um tapete azul escuro, delicadamente estampado com flores-de-lis e pequenas bolinhas, desviaram de uma das crianças, que agora tentava fotografar os pais, e foram para o terraço. Outra boa escolha, o Sol iluminava as árvores e construções do outro lado do Rio Teplá, um convite à contemplação.

Jan passou a escutar o burburinho da conversa delas. Algo na mulher que sentou quase de costas para o maestro chamou sua atenção. Aqui e ali, ele captava umas palavras soltas. Primeiro, comentários sobre o cardápio do lugar, um crepe, molho de caramelo, torta de maçã. Um tempo depois, o maestro entendeu que uma delas faria uma entrevista com a outra, que estava de passagem por Karlovy Vary.

Esse voyeurismo era parte do que Jan gostava de fazer quando aproveitava parte de suas folgas no Cafe Elefant, além de saborear os pratos e finalizar a experiência com um pouco de licor Becherovka. Mais que isso. Era um hábito que ele começou a cultivar com mais atenção na época em que morou pela primeira vez na cidade, ainda que naqueles anos frequentasse outros lugares.

Iniciou a temporada em Karlovy Vary sendo um jovem com talento para violoncelo e muita curiosidade. Já gostava de observar os que descansavam nos parques perto de suas casas, assim como os turistas que chegavam ali e ouviriam a história sobre o dia em que o imperador Carlos IV viu um jato de água de uma grande fonte termal durante uma caçada e mandou construir ali um povoado.

Os visitantes encontrariam uma estátua representando um cervo que era alvo da caçada caso decidissem caminhar pelos bosques. Havia também os passeios pelas colunatas e construções históricas da cidade, a fábrica de cristais Moser, os spas. Qualquer que fosse o roteiro, ou a duração do contato que tivesse com eles, Jan percebeu que poderia identificar algo interessante em muitas dessas pessoas, fossem elas moradores ou turistas.

Em algumas ocasiões, era o violoncelo que chamava a atenção de alguém. Uma vez foi a de uma senhora, também artista. Outra vez foi a de um menino – teria ele enveredado pela música mesmo ou escolhido outra profissão?

Mais tarde, o próprio Jan passou a aproveitar o violoncelo para provocar conversas. Um flerte iniciado durante uma apresentação acabou em namoro, mas algumas mulheres ele nunca tornou a ver. Esse foi o caso de uma jovem que conheceu no funicular que parte da rua Divadelní.

Fato é que há certos costumes que nos acompanham ao longo da vida, sem que racionalmente saibamos explicar o porquê disso. Até hoje, Jan poderia percorrer todo o caminho de volta para casa pensando na vida daqueles desconhecidos ou imaginando desfechos para relatos entrecortados que ouvira.

Algumas histórias seguiam com ele apenas até uma das esquinas da rua Stara Louka. Outras atravessavam a pequena ponte sobre o rio Teplá na companhia de Jan, fervilhando na mente dele até que fossem transformadas em música.

E era justamente sobre uma composição que Jan pensava quando chegou ao Cafe Elefante. Precisava terminar de organizar aqueles papéis e entregá-los aos produtores.

Mas antes, havia tempo para um pouco de contemplação. Afastou os documentos para um canto da mesa quando Pavel, o garçom que era um de seus amigos naquele lugar, serviu o que ele havia pedido. Jan tomou um gole de café e teve sua atenção capturada outra vez pela conversa das duas mulheres que estavam do outro lado do vidro.

Agora podia escutá-las com um pouco mais de clareza, já que a numerosa família de turistas tinha saído. Havia algo relacionado a livros. Quem estava com a palavra neste momento era a jornalista, Eva. “Suas obras anteriores eram ambientadas em cidades que têm alguma relação com a água e recebem turistas de várias partes por causa disso. Você faz umas observações muito interessantes sobre lugares assim e…”.

Como Pavel arrastou uma mesa para tirá-la do caminho após servir as duas mulheres, Jan não conseguiu escutar a pergunta que foi feita a seguir. Mas entendeu que a entrevistada se chamava Martina.

“Você tem razão, cidades como Karlovy Vary despertam minha curiosidade. Gosto de observar o movimento das pessoas, imaginar o que acontece quando elas decidem se afastar da rotina para uma temporada em termas, uma praia ou um clube de campo, coisas assim. São muitas histórias que se cruzam nestes espaços”, afirmou a escritora.

Martina fez uma pausa, que Jan imaginou ser para tomar um gole de chá ou café, pelo tilintar da louça que houve a seguir. “Mas a verdade é que minha vinda para cá tem a ver com uma história pessoal”, completou a entrevistada.

Talvez aquele fim de tarde trouxesse alguma inspiração para Jan. A esta altura, ele já tinha lido alguns parágrafos sobre os ensaios da orquestra nas próximas semanas, mas com a atenção dividida. Concordava com as opiniões da mulher na outra mesa, mas havia algo mais prendendo sua atenção ele não conseguia definir o que era.

“Ah, então você já esteve aqui? Pelo que o pessoal da editora me falou ao sugerir a pauta, pensei que não conhecia a cidade…”, continuou Eva. A escritora tirou algo da mochila enquanto explicava melhor: “É que minha família decidiu passar uns dias em Karlovy Vary como parte de uma viagem de carro há muitos anos. E, quando nos reuníamos para as festas de fim de ano, alguém sempre lembrava de algo sobre aquela época e todos se divertiam bastante. Isso ficou na minha mente. Até que, há uns meses, mexendo em caixas no sótão, encontrei isso aqui ”.

Martina colocou a caixinha lilás com todo cuidado sobre um guardanapo e fez ele deslizar na direção de Eva. Quando desfez o laço e retirou a tampa, revelou uma delicada rosa petrificada. Com mais delicadeza ainda, desdobrou um bilhete que estava guardado junto com o suvenir e entregou para a jornalista. “Leia, por favor. Fique à vontade”, disse.

Eva passou uns segundos em silêncio, demonstrava uma atenção genuína. Por fim, retomou o diálogo: “Nossa, que achado! Estas histórias são fascinantes, agora consigo entender melhor o motivo da sua viagem. Mas me fale sobre este reencontro, ele aconteceu ou você está aqui pensando em promovê-lo?”.

Neste momento, Pavel voltou ao salão para entregar alguns pedidos dos clientes. Serviu mais um pouco de vinho para a mulher que guardara o celular quando ganhou a companhia de mais algumas pessoas. Depois, dirigiu-se para a mesa de Jan, pois este havia lhe chamado discretamente.

“Nunca aconteceu. Logo que o grupo voltou ao Grand Hotel Pupp de um passeio pelos bosques, chegou a notícia de que o irmão do meu bisavô estava muito mal. O plano era fazer uma viagem longa mesmo, passando por mais dois países ainda, mas a família precisou voltar imediatamente”.

Eva balançava a cabeça, enquanto anotava as respostas de Martina no bloco com rapidez. “A internação durou muito tempo, foi um período difícil, ele era muito querido por todos. Depois, você sabe como são essas coisas, cada um foi para um canto, vieram os filhos e não foi possível fazer outra viagem dessas. De vez em quando falávamos sobre percorrer a mesma rota e incluir novas gerações da família. Quando encontrei esta caixinha, decidi vir na frente. Alguns primos prometeram me encontrar aqui e…”, prosseguiu Martina.

Pavel estranhou um pouco a expressão meio perdida de Jan quando este lhe pediu uma dose de Becherovka, mas pensou que poderia ter a ver com os papéis espalhados pela mesa. Mas a verdade é que, naquele momento, o maestro e cliente assíduo do Cafe Elefante nem se dava conta da existência deles ou sequer pensava sobre os concertos que se aproximavam.

Ele só conseguia pensar na conversa que se desenrolava no terraço. Eva agora gesticulava com a caneta apoiada entre os dedos: “Nossa, imagino a expectativa que você está sentindo. Eu também ficaria assim. Penso que se você encontrar este senhor, Jan…”, continuou, entregando o bilhete para Martina.

Pela vidraça, Jan conseguiu ver o conteúdo do bilhete. Seus pensamentos formavam um turbilhão, enquanto frases soltas ecoavam na sua mente: “Talvez ele queira saber o que aconteceu também”, “Acho que seria ótimo, ela só viu o bilhete que estava dobrado na caixinha muito tempo depois”, “Não conseguiu reencontrá-lo na época, mas me confessou que ainda pensava nele de vez em quando”, “Sendo que eu preciso sondar antes de contar qualquer coisa para ele”.

Custou, mas Jan encontrou forças para se levantar, ainda que meio desajeitado. “Sem querer ser indelicada… Sua avó ainda está viva?”, perguntou Eva, enquanto Martina tirava fotografias do álbum guardado na mochila.

Pavel precisou segurar Jan pelos cotovelos neste momento, derrubando a bandeja na qual trazia a dose de licor. A conversa foi interrompida antes que a escritora conseguisse dar uma resposta ou talvez ela tivesse falado alguma coisa e o maestro simplesmente não conseguiu escutar. Com o barulho, os clientes foram em direção aos dois amigos para saber se eles precisavam de ajuda. Jan pôde finalmente ver o rosto de Martina.

* Este conto foi escrito em junho de 2020, para o concurso literário Pense Algo Bonito, Sonhe com República Tcheca. Depois disso, fiquei com muita vontade de conhecer Karlovy Vary.

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